A cerimónia de abertura do festival Terras Sem Sombra aconteceu no passado dia 26 de janeiro, no concelho da Vidigueira. A lotação da Igreja Matriz de Vila de Frades não foi suficiente para acolher todos aqueles que ansiaram assistir ao concerto Caminhar pela Água: Vozes Femininas da Geórgia, protagonizado pelo coro do Spelman College Glee Club. Sob a direção de Kevin Johnson e acompanhado pela pianista Britnney E. Boykin, o grupo cantou composições de Julián Carrillo e Franz Schubert e interpretou originais de uma das principais compositoras de música coral da América: Rosephanye Powell.
O Spelman College Glee Club – que pertence à faculdade de artes liberais historicamente negra em Atlanta, na Geórgia – é reconhecido pela excelência e reputação de coral desde 1925. O seu repertório, além de incluir seleções sagradas e seculares com especial ênfase em espirituais tradicionais, também se foca em música de artistas e compositores afroamericanos, e explora caraterísticas de diferentes culturas. Mas se o Spelman College é a alma mater de milhares de mulheres afrodescentes notáveis, é um homem que está por trás do coro mundialmente famoso. Kevin Johnson é, há duas décadas, figura fundamental para aumentar a visibilidade do grupo feminino e elevar a sua musicalidade com atenção aos detalhes e paixão pela música. Há 20 anos que K. Johnson tem o privilégio de compartilhar não só o conhecimento da sua experiência musical, como também de envolver os afroamericanos na busca da excelência e fazer parte da elevação da instituição, e das mulheres negras, à importância reconhecida e inigualável no mundo.

Em 1868 nasceu aquela que viria a ser a primeira instrumentista afroamericana a prosseguir e a concluir, oficialmente, os estudos numa instituição de música nos Estados Unidos da América. Harriet Gibbs Marshall não presenciou a guerra civil americana nem a abolição da escravatura, mas viveu na era das leis de Jim Crow, de linchamentos, motins raciais e segregação, assistiu à Primeira Guerra Mundial e ao início da Segunda, fez parte do Harlem Renaissance e da Grande Depressão. Embora presente desde o início, as mulheres afroamericanas são frequentemente omitidas da narrativa mais ampla da história da música, mesmo que essas obras sejam um reflexo genuíno das mudanças sociais na história dos negros.

A influência de músicos afroamericanos na evolução da música popular tem sido imensurável. Do blues ao zydeco, do jazz ao hip-hop, espirituais no tempo dos escravos sobre a luta e a superação pessoal até aos ancestrais do rock and roll, a música enraizada na América está absolutamente repleta de características da comunidade afroamericana. O intenso tráfico de escravos que povoou o continente não trouxe apenas mão-de-obra, mas também uma cultura rica e elementos que moldaram a sociedade e a história de todo o país. De cantores de folk-blues como Huddie Ledbetter, a artistas de hip-hop como Common, Talib Kweli e Roots, a música folclórica das comunidades afroamericanas incorporou a luta das pessoas marginalizadas nos Estados cada vez menos Unidos. Os variados ritmos, instrumentos de percussão e o vocal polifónico marcaram uma nova época e deram origem a múltiplos estilos de música como o jazz, o blues e o gospel. Cada um destes componentes trouxe muito mais do que sons e melodias, enraizou outra cultura, criou uma mudança de estilos e períodos representados na história da música como um todo.

Para perceber a importância do papel do Spelman College no percurso, pessoal e profissional, destas jovens que evocam o seu canto ao mundo, é necessário saber que a música espiritual na cultura afroamericana permanece no centro da expressão musical para a população negra, enquanto lutam diariamente para encontrar significado, propósito, visão e esperança dentro da sociedade atual. Muitas das condições que moldaram o percurso dos afroamericanos desde o período da escravatura até os dias atuais, transformaram-se na sofisticada linguagem do politicamente correto, do perfil racial, da pobreza económica e da injustiça social. As tendências musicais na cultura afroamericana fornecem, muitas vezes, uma resposta correta às condições em que as pessoas negras se encontram, enquanto tentam definir a sua identidade, o foco espiritual, a resposta artística apropriada a um mundo em constante transformação. A função do espiritual continua a ser a mesma que era há duzentos anos – a música folclórica de um povo que canta sobre a esperança por uma vida melhor.

As contribuições das mulheres afroamericanas para a música são vastas e variadas: os seus esforços artísticos podem ser ouvidos em praticamente todos os géneros e estilos de música; muitas das suas criações musicais são ouvidas na voz de Janis Joplin e nas canções de Louis Armstrong; as suas biografias poderiam muito bem narrar uma história sobre os Estados Unidos e a sua cultura. Mulheres, negras, afroamericanas, que deixaram um legado musical capaz de colmatar e quebrar as divisões raciais, criar estratégias de marketing dominantes da música afroamericana e amplamente popular, negociar novas conceções de feminilidade e sexualidade que, muitas vezes, contradizem as normas da ideologia patriarcal. Longe de serem apenas artistas influentes, estas mulheres mudaram as normas populares de raça devido à sua alta visibilidade na cultura popular americana.

O principal papel do Spelman College Glee Club é continuar a dar oportunidade a jovens afroamericanas de conseguirem unir o céu e a terra, a razão e a fé, política, economia e religião, expressarem palavras de amor, incutirem atitudes de louvor, para que a sua luta por justiça, igualdade, integração e aceitação na grande e dominante cultura leve à constante renovação do orgulho pela herança africana e a sua incorporação no meio da arte, da literatura e na música da América. Como tão bem cantaram e encerram o primeiro concerto do Terras Sem Sombra: «It’s my choice and I choose to change the world. It’s my voice, and I’ll speak with pride and courage.»
La Bohemie.