Quando me perguntam qual o sentido de Liberdade para mim, respondo sem hesitar: respeito. Se queres respeito, faz-te respeitar – penso muitas vezes. De nada nos serve a nossa própria liberdade se não tivermos respeito pela liberdade do outro. A minha liberdade começou décadas antes de eu existir, mas eu não cresci a emocionar-me com as músicas «E Depois do Adeus» ou «Grândola Vila Morena». Em casa dos meus pais nunca se comemorou o 25 de abril, tampouco vi-os algum dia segurar um cravo. Mário Soares sempre fora um nome a evitar e a palavra esquerda era descrita como “o outro lado”. A minha Mãe é monárquica, o meu pai muito à direita. A «Revolução de Abril» era um tema discutido só e apenas quando eu e os meus irmãos tínhamos de elaborar um trabalho para a disciplina de História. Não cresci a ouvir os testemunhos fascinantes que hoje leio sobre a luta e as conquistas de Abril, porque parte da minha família perdeu uma parte de si aquando a liberdade deste país que novamente a acolheu. A minha liberdade construiu-se décadas antes de eu própria conhecer o seu significado. Os meus avós não foram para África explorar escravos. Os meus avós foram para África construir o seu legado. Naturais de Vila de Rei, criaram os seus negócios, compraram a sua casa e criaram os seus três filhos em Angola. A minha Mãe e os meus tios nasceram no Lobito, cresceram no Lobito, estudaram no Lobito. O Lobito – uma cidade da província de Benguela – era a casa dos meus avós, dos meus tios e da minha Mãe. Todos testemunharam a Guerra de Independência de Angola e eu cresci a ouvir histórias sobre a Guerra do Ultramar, histórias sobre os massacres em Angola e como era viver com medo, receio e terror num país cujas ruas foram tomadas por tropas e militares, histórias sobre como era viver numa casa protegida apenas com cobertores pendurados em janelas por causa dos tiros perdidos e das bombas que tudo à volta destruíam. A história que tão poucas vezes me contaram foi apenas uma: quando se deu a Revolução do 25 de abril de 1974, a minha tia Elizabeth – que estudava Medicina em Lisboa – regressou para junto da família em Angola. Com o PREC, as greves, a suspensão de aulas, a crescente agitação política que se vivia na altura, não fazia sentido continuar sozinha na capital. A minha tia Elizabeth voltou pouco tempo depois para Portugal selada num caixão de chumbo. Morreu no meio de uma revolução, morreu por consequência de uma revolução que nunca foi celebrada pela minha família. Porque a minha família perdeu em Angola tudo o que em Angola construiu. O meu avô teve de fugir sozinho num paquete com o caixão da filha mais velha. O meu avô deixou para trás a mulher e os filhos para vir a Portugal enterrar uma filha. As empresas foram encerradas, a casa tomada, as terras expropriadas. A minha avó regressou mais tarde com o meu tio e a minha Mãe e foi em Lisboa, ali na Rua Passos Manuel, que viveram. Ou sobreviveram. Muitos anos depois, foi também aqui, em Lisboa,que eu e os meus irmãos nascemos. Numa outra realidade, em liberdade. Eu nasci em liberdade, eu cresci em liberdade, eu vivo em liberdade, e festejo essa liberdade, mas levei demasiados anos a compreender e a aceitar o sentido da minha educação, dos meus valores, da minha existência. Porque tive primeiro de compreender e aceitar a liberdade dos outros. Não somos todos iguais, não temos de ser todos iguais, mas é precisamente o respeito por essa liberdade que nos permite sermos diferentes. La Bohemie. |
