Kate Moss: quem a transformou num ícone?

Kate Moss é uma espécie de ídolo para toda uma geração. A sua imagem está presente na música, na fotografia, na moda e na arte. Os estilistas lutam por ela e nenhuma outra top model conseguiu chegar a tantas publicações ou ter a legião de fãs que Kate tem. Mas o que faz dela um verdadeiro ícone? Tudo começou em Nova Iorque em 1988: com apenas 14 anos, Kate Moss é descoberta por uma agência de modelos inglesa e é o início de uma incrível carreira. De menina a supermodelo, de miúda dos subúrbios de Londres a ícone de toda uma geração. Mesmo 28 anos depois, o estatuto desta mulher inglesa continua inabalável. Fotógrafos, estilistas, e artistas de todo o mundo querem trabalhar com ela.

Albert Watson, Marrocos, 1993

Albert Watson, Marrocos, 1993

O fotógrafo Albert Watson, famoso por retratos de celebridades, diz que «as massas estão muitas vezes à espera de um ícone como a Kate. Os fotógrafos são, de certa forma, criadores de imagens, mas só o são se existir de facto talento do outro lado da lente». O início da carreira de Kate é lento. Ela é completamente diferente de todas as modelos de sucesso da altura. É demasiado baixa, demasiado andrógena e, no sentido clássico, não é suficientemente sensual. Em 1990 é contratada por John Galliano e esse desfile muda tudo. Um ano depois, assina um contrato com a Calvin Klein para a campanha publicitária do perfume “Obsession”. Ela mostra-o como uma rapariga magra, pálida e nua. Este foi o seu salto internacional.

«The Third Summer Of Love», Corinne Day

O Metropolitan Museum em Nova Iorque dedicou uma exposição ao tema “Qual o papel das modelos na moda, na estética de determinado período?”. Nos anos 90 houve uma incidência na desconstrução da moda e uma mudança no padrão de beleza. A beleza mais conservadora e clássica enaltecida até então deu lugar a formas de beleza mais variadas e alternativas. De certa forma, as modelos tornaram-se musas para toda uma geração. E um excelente exemplo disso são as coleções grunge em 1992, onde vimos o estilo street chic ganhar terreno, tal como tinha acontecido nos anos 60. Em grande medida, a Kate Moss fez pelos anos 90 o que a Twiggy fez pelos anos 60, ou seja,  galvanizar a beleza e dizer às mulheres que aquela revolução tinha um rosto. O estilo grunge substituiu a obsessão pelo luxo dos anos 80. Descuidado, anticomercial, interdisciplinar. O estilo casual street é associado à música simples e direta de bandas indie rock como os Nirvana, Oasis e Blur. Por fim, a cultura pop é dominada pelo estilo Cool Britannia e Kate personifica essa sensibilidade como ninguém. Fundamentais para este estilo são também as fotografias da fotógrafa Corinne Day. Ela cria fotografias íntimas, diferentes de tudo até então e a sessão “The Third Summer of Love” faz história.

Annie Leibovitz, Vogue USA, 1999

Annie Leibovitz, Vogue USA, 1999

Versace prevê o potencial da jovem Kate Moss e é um dos primeiros a promover o talento dela. Contrata-a repentinamente, colocando-a no centro dos seus desfiles. Até hoje, Kate trabalha com a irmã dele, a estilista Donatella Versace. Segundo Angela Buttolph, autora do livro “Kate Moss Style”, «Ela foi uma lufada de ar fresco no mundo das supermodelos mas, do ponto de vista político, na altura, em Inglaterra, havia muito desemprego e os jovens só queriam passar a noite a divertir-se e Kate fazia parte dessa cultura, tal como os miúdos rebeldes que fumavam nas esquinas». O estilo heroin chic fazia parte disso. Achavam-se todos muito grungy e acreditavam que vendiam moda, mas não era moda que estavam a vender. A Calvin Klein vendia coisas que expressavam essa atitude, uma atitude antisocial. E havia muitas fotografias que passavam uma imagem descontraída, mas durona. Essa estética que a Corinne Day, em particular, impunha era chocante e rebelde, porque era real.

Corinne Day, British Vogue, 1993

Quando em 1993 estas fotografias são publicadas na Vogue britânica, a imprensa mostra-se indignada. São feitas acusações de pornografia infantil e bulímia e nasce o conceito de heroin chic. O rosto e corpo de Kate Moss tornam-se o emblema da nova geração. Esta é a geração das raves, das drogas e das discotecas. Prolifera a fotografia de moda jovem e rebelde e a imagem que surge neste contexto muda o visual da indústria da moda perfeita.

Peter Lindbergh

Peter Lindbergh

Paris é a capital da moda e das aparições públicas. Para Kate Moss também. Com apenas 20 anos, é contratada por todos os grandes estilistas, ganha mais de 1500 libras por dia e passa o tempo entre festas a beber champanhe e discotecas de luxo. E aparece repetidamente na capa da Vogue porque a revista consegue vender mais de 5.000 cópias. Desde o início, ela trabalha com os fotógrafos mais importantes que promovem a sua ascensão ao estatuto de ícone. O fotógrafo Peter Lindbergh acompanhou Kate Moss durante 20 anos e diz que «ela é extremamente natural e estranhamente cómica. É sempre divertida, está sempre bem disposta. Tem algo que é indescritível, algo inigualável, algo que mais ninguém tem, algo que nos faz dizer que a Kate é cool». Kate Moss tinha chegado ao mundo das supermodelos. Tornou-se um ícone e um modelo a seguir para a nova geração de mulheres confiantes. Mas há perguntas a fazer: como é que funcionam estes processos? Quem é responsável, a modelo ou a indústria? A pessoa ou a encenação da beleza? Lindbergh explica: «O surgimento de um ícone é algo muito complexo. Os ícones quase não contribuem para este processo. A pessoa para se tornar um ícone chega a um ponto em que os outros fazem dela um ícone. E aí, tornar-se ela própria um ícone. A pessoa é elevada ao estatuto de ícone e depois de isso acontecer, não é possível voltar atrás». Desta forma, Kate Moss torna-se tão importante quanto o produto.

Foto alterada pelo fotógrafo Daniele Buetti a partir da campanha "Obsession" da Calvin Klein

Foto alterada pelo fotógrafo Daniele Buetti a partir da campanha “Obsession” da Calvin Klein

Kate Moss passou a fazer parte do arquivo da imagem mundial. Outrora, Nossa Senhora era venerada como sagrada e foi criada uma iconografia religiosa complexa. Mas hoje em dia, um ícone é uma expressão da estética contemporânea, uma estética que influencia todas as áreas da cultura, produção, moda, música e arte. O termo ícone está associado à iconografia, à imagem e o reconhecimento é um grande componente da criação de uma imagem. No caso das imagens que não são efémeras, que nos marcam, que são relevantes e que nos ficam na memória visual, é uma questão de imagens interessantes e complexas. «A complexidade da imagem encerra sempre vários motivos, nunca apenas um. É denso, é um conjunto de diferentes elementos atrativos. No caso de uma mulher bonita isso seria apenas mera publicidade. No caso de Kate é a beleza e a transitoriedade. A sexualidade, mas também associada à fealdade, com traços de escuridão. É ao mesmo tempo a normalidade e a inacessibilidade da existência enquanto estrela. A imagem agressiva, radical e provocadora de Kate Moss contrasta com a contemplativa, harmoniosa, introvertida e calma de Nossa Senhora. Obviamente são ambas completamente diferentes uma da outra, mas não deixam de ser um ícone» explica Chistian Boros. Já Daniele Buetti é da opinião que «as figuras sagradas ofereciam algo diferente. Eram exemplares porque viviam vidas perfeitas, porque tinham feito milagres, porque eram moral e eticamente infalíveis». Há muito que Daniele Buetti se preocupa com as imagens iconográficas da indústria da moda, com imagens de mulheres angelicais, perfeitas, retocadas, irrepreensíveis exteriormente. É precisamente o exterior que Buetti viola e destrói. Ele inscreve com uma caneta a parte de trás de fotografias de revistas e volta a fotografá-las. «Achei isso interessante. O que acontece quando acrescento algo com a caneta àquela perfeição, àquela cara ideal, àquele corpo perfeito? Quando é que começa a ser demasiado? Posso identificar ainda mais aquela beleza? Ou pelo contrário, destruo-a desde o início?», interroga-se. Como modelo, Buetti também usa a célebre campanha “Obsession” da Calvin Klein, de 1993, a campanha com a qual Kate Moss desencadeou a destruição do mundo da moda.

Estilos da Kate Moss

Estilos da Kate Moss

No mundo da moda, há muito histeria, como toda a gente sabe. Um fotógrafo entusiasma-se com uma modelo, depois os editores também se entusiasmam  e não param de surgir fotógrafos e editores entusiasmados. E, de repente, temos uma celebridade. O facto de, desde o início, Kate Moss ter trabalhado com os melhores fotógrafos, os melhores estilistas, os melhores diretores artísticos, os melhores maquilhadores e cabeleireiros, foi inevitável ter acabado por ser uma grande estrela. Tanto na altura como atualmente, a Kate sempre teve o seu próprio estilo, sempre foi uma pessoa muito criativa no que diz respeito ao que veste e não há dúvida de que ela representa a novidade na moda. Ela tem um estilo muito próprio, tem uma forma excêntrica de misturar alta costura com marcas convencionais, high fashion com low fashion, e essa ousadia é inata, portanto ela não foi influenciada por nada além do seu bom senso. Kate detesta seguir tendências e isso é notório na sua vontade de arranjar novas formas de combinar as roupas de forma acessível a todos nós. O estilo único de Kate Moss, a combinação de peças caras de estilistas com peças baratas, é imitado inúmeras vezes. Cada vez mais, não é a moda que Moss representa. Ao identificar-se com ela, toda uma geração está a resistir às escolhas predefinidas.

Os meados dos anos 90 marcam o ponto alto da carreira de Kate Moss. Todos os grandes estilistas contratam a modelo com pouco mais de 1,70m. Dos avant-garde aos clássicos, ela representa tanto o luxo como o punk, a elegância e o rock. Ela representa tudo. Como modelo, Kate tem a reputação de ser indiferente à sua imagem pública. Fuma, bebe, vai a festas e torna-se mãe solteira. Algumas marcas afastam-se dela depois dos escândalos com drogas, mas a longo prazo, a sua imagem em nada diminui o seu sucesso. Pelo contrário. Sendo ela considerada cool, a sua irresponsabilidade e indiferença ajudaram-na a alcançar o estatuto de ícone. A sua personalidade desajustada é particularmente admirada por Vivienne Westwood e pelo marido Andreas Kronthaler. «Ela é simplesmente sensual. Não podemos esquecer-nos disso, isso é a base de muita coisa. Ela é simplesmente uma mulher sensual. Há sempre uma ousadia, um sentido de classe que nem todas as mulheres têm», assume o próprio. Já Vivienne diz achar Kate Moss fantástica e acredita que ela fez muito, acrescentando «o que mais gosto nela é ela não querer saber e, de alguma forma, este tipo de atitude, é uma atitude meio punk. A Kate Moss em 1900, teria sido uma prostituta. Com sorte, teria tido um bordel e pessoas a sustentá-la. Teria tido uma reputação de igual dimensão. Hoje são as modelos e não vejo grande problema».

Kate Moss é diferente das outras, motivo pelo qual é contratada para experiências e campanhas extraordinárias. A marca de roupa interior Agent Provocateur, fundada pelo filho de Westwood, Joseph Corre, é conhecida por arriscar. A empresa contrata o realizador Mike Figgis, em 2007, para uma campanha publicitária que fez história. O realizador Mike Figgis orientou Moss cinematograficamente e diz que «se usamos um casaco usamos um casaco, seja ou não um bom casaco. Acontece o mesmo com um par de cuecas ou um soutien ou seja o que for. Kate Moss consegue torná-los interessantes. Não sei como é que ela faz isso, mas o talento é dela». Figgis converte a modelo Kate Moss numa figura tridimensional que caminha sonâmbula através dos seus sonhos e fantasias. Kate é apresentada não como modelo, mas como ser humano. Ela, e não as roupas que está a usar, são o centro da campanha publicitária. O realizador explica que «as pessoas querem que os seus ícones pareçam seres humanos na medida em que não são perfeitos. Se a pessoa conseguir sobreviver aos seus demónios e defeitos de forma pública, o que é muito difícil e ela saiu muito bem desse processo, o seu estatuto volta a subir, porque as pessoas não querem ser como ela, mas querem sentir-se familiarizadas com alguns dos problemas». Kate Moss não é uma pessoa trágica ao contrário de outros ícones, como Jim Morrison, por exemplo, esse tipo de cliché. Ela representa em grande medida uma pessoa com muita personalidade e muita energia e uma atitude positiva, mesmo quando as coisas estão mais instáveis.

Chuck Close

Chuck Close

A Kate tem um rosto insípido e o seu sucesso deve-se em parte a isso. É bonita, os traços são todos perfeitos., mas pode ser uma tela em branco. E talvez seja por isso que os pintores e fotógrafos gostam dela porque podem transformá-la no que quiserem que ela seja. Na arte, as imagens iconográficas são constantemente reinterpretadas. Ao longo dos anos, Kate passou de uma fotografia a uma imagem, a um motif na arte. Converteu-se num protótipo, numa musa, desencadeando associações para muitos artistas internacionais. O pintor Chuck Close usa o processo do daguerreótipo, inventado no século XIX, em todas as suas fotografias. Esta técnica produz um efeito muito especial: tudo parece adulterado, cada nuance e cada poro é visível.

Lucien Freud

Lucien Freud, 2002

Kate Moss é a rapariga de ouro do século XXI. Quem usa a sua imagem, também sai a ganhar. Tanto no mundo da moda, como no mundo das artes, com a imagem dela, tudo é vendido mais caro, melhor e mais rápido. No mercado de arte passa-se o mesmo. O conhecido artista britânico Lucian Freud pintou Kate Moss em 2002 quando ela estava grávida. Causou grande impacto no mundo das artes  porque o pintor inglês tinha várias vezes rejeitado distintas personalidades, à exceção da Rainha. Mas não era só a cena artística ocidental  que estava preocupada com o fenómeno Kate Moss. Mesmo na China comunista, os artistas estão atentos aos ícones do consumismo e o artista chinês Yang Yong acaba mesmo por dizer que «a Kate Moss personifica a imagem feminina da independência e individualidade. Ela não é convencional, mas no entanto, está na moda, é cool, mas introvertida. Hoje, as jovens na China vivem uma abertura ao Ocidente e o processo de globalização».

Esta capacidade de transmitir emoção que a Kate Moss tem não consegue ser valorizada o suficiente. É simplesmente a melhor ferramenta para dar alma às coisas. E ela consegue dar vida às coisas. Vinte anos depois, é impossível imaginar o mundo da moda sem Kate Moss. Na verdade, nunca nenhuma outra modelo teve tantos contratos depois dos 37 anos. Ela é, de longe, uma das modelos mais bem pagas, cria malas para a Longchamp, trabalha como designer para a rede de lojas Topshop, e ganha milhões. Nada disto impede alguém de a contratar. Para Yves Saint Laurent, ela foi a musa desde o primeiro momento. Mesmo hoje, após a sua morte, a marca continua a trabalhar com Kate Moss. O CEO da YSL de beleza, Renaud de Lesquen, afirma que «no mundo da moda, são as mulheres que inspiram os estilistas. Yves Saint Laurent foi muito inspirado pelas musas  que o acompanharam desde o início. Se olharmos para trás, houve várias gerações de mulheres e em cada geração, há sempre uma, duas, três mulheres  que são ícones emblemáticos da feminilidade».

Kate Moss, 1988

Kate Moss, 1988

Goste-se ou não de Kate Moss, ela é alguém para quem os jovens olharam  e consideraram relevante nas suas lutas, nos seus triunfos, nos seus sucessos. Não se resume à beleza dela. Ela influencia a vida das pessoas que olham para ela e lêem a sua história.

Fonte: tvf international

La Bohemie.

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